Deixem aqui os vossos comentários

terça-feira, outubro 30, 2007

Defesa do Sublime

Edvard Munch - Madonna (1895)

Quero este poema no lugar do sublime,
com uma cadeira de névoa ao colo da estátua
e os seios de erva tingidos de púrpura. Puxo
a túnica até à abertura do ventre; e roubo
ao interior de pedra um desenho etéreo,
como se o paraíso estivesse no centro
do umbigo, inscrito na massa obscura
do amor. Moldo-a com as mãos da alma,
esculpindo um corpo. Por vezes, apercebo-me
da sua respiração, de um palpitar de artérias
no interior do mármore. Ouço um desejo
fremente, o choro de êxtase que antecipa
o esgotamento, o sussurro que permanece
no ouvido quando o sol se esvai num
horizonte de cortinas, e os vidros reflectem
os amantes. E dou-lhes o lugar que o sublime
habita, com o seu rosto trabalhado pelo
cinzel do sentimento, raspando a cal do sonho
até deixar entrar a água da vida: a doce
agitação de um abraço, o perfil entrevisto
numa humidade de travesseiros, lábios
subindo a breve colina das pálpebras. Canto,
então, este canto que se prolonga no corredor
do poema, atirando para o lado os obstáculos
da indecisão, abrindo labirintos e becos, até
às portas de argila da memória. Abro-as com
a chave dos murmúrios que me emprestaste,
rodando-a com os dedos do silêncio; e
encontro a tua voz, com o seu fogo de sílabas,
e um ritmo de luz em cada palavra. Trata-se
de um lugar sublime, esse em que a mulher
límpida se senta, limpando a névoa desta
casa com a sua esponja de linguagem, numa
sofreguidão de segredo que o verso ecoa.



Nuno Júdice
Geometria Variável
Publicações D. Quixote
Lisboa
Abril 2005

Sem comentários: