Deixem aqui os vossos comentários

quinta-feira, agosto 20, 2009

Mania da Solidão





Como um jantar frugal junto à clara janela.

Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.

Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam

ao fim de pouco tempo em pleno campo.

Como e observo o céu - quem sabe quantas mulheres

estão a comer a esta hora - o meu corpo está tranquilo;

o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.



Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar

a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,

mas não valem estas cerejas que como sozinho.

Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem

brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.

Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida

das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.

Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se

no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.



Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,

que a aceita impassível: um cicio de silêncio.

Cada coisa na escuridão posso sabê-la,

como sei que o meu sangue circula nas veias.

A planura é água que escorre entre a erva,

um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra

vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias

com todas as coisas que vivem nesta planura.



A noite importa pouco. O rectângulo de céu

sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda

debate-se no vazio, longe dos alimentos,

das casas, distinta. Não se basta a si mesma

e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,

o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.



Cesare Pavese

Trabalhar Cansa
Tradução de Carlos Leite


segunda-feira, maio 04, 2009

Escuto


Escuto sem margens a melodia do rio.

Na noite existe um canto líquido

sementes que ardem nas línguas dos rouxinóis.

Sorvo essa polpa essa enxurrada de valsas

e atravesso a ponte.



Um calor primitivo roça a madrugada:

És tu o sol que me nasce entre as pernas.





Catarina Nunes de Almeida




quinta-feira, abril 30, 2009

Beijar teus olhos



Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.



- Eu devo rasgar minha face para que a tua

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.





Herberto Helder


sexta-feira, janeiro 09, 2009

Meto-me para dentro, e fecho a janela
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Alberto Caeiro
Poemas inconjuntos

sábado, outubro 18, 2008

La na praia da Boa Nova




















Lá na praia da boa Nova um dia
Edifiquei,( foi esse o grande mal)
Alto castelo que é a phantasia
Todo de lapiz lazzuli e coral


António Nobre

Trabalho diurno

-
-
-
-
-
TRABALHO DIURNO
-
-
-
-
Esvaziei a tarde do sol que a enchia;
tirei a luz do céu, balde após balde,
e deitei-a para o poço sem fundo
onde ela caía, num baque surdo,
espalhando pedaços de brilho
pelas paredes húmidas. Quando
o dia ficou sem luz, tapei o poço
com a tampa, e perguntei se alguém
precisava de ser iluminado. Vinham
ter comIgo; e perguntavam-me quanto
custava um grama de sol. Eu dizia-lhes:
«É mais caro do que a noite.» Mas eles
não se importavam, e juntavam-se
à minha volta, para que eu voltasse
a abrir o poço. E eu, sabendo que
a corda do meu balde não dava para
chegar ao fundo, pedia-lhes que
se atirassem para dentro do poço,
atrás da luz, se não queriam
a noite. Mas eles recusavam; e
afastavam-se na obscuridade,
deixando-me sozinho. Então, levantava
a tampa do poço - e via, lá no fundo,
a última luz a desaparecer no abismo.
-
-
-
-
Nuno Júdice
A Matériado poema
1ª edição - Abril de 2008
Publicações Dom Quixote
-
-
-

domingo, outubro 12, 2008





a árvore abriu-te os braços e eu despi-te

o verde como se eu fosse a mão do outono

e dei-te o suco branco da inquietude

e o amor como palavra fome



deixa que o verbo rebente

como tu dentro do eu

língua de terra gramática de onda

nascemos da espuma de uma frase




Pedro Sena-Lino





quinta-feira, abril 24, 2008

Estavas sentado



Estavas sentado e havia uma paisagem agreste

nos teus olhos: as nuvens a prometerem chuva,

os espinheiros agitados com a erosão das dunas,

um mar picado, capaz de todos os naufrágios.


O teu silêncio fez estremecer subitamente a casa -

era a força do vento contra o corpo do navio; uma

miragem fatal da tempestade; e o medo da tragédia;

a ameaça surda de um trovão que resgatasse a ira

dos deuses com o mundo. Quando te levantaste,


disseste qualquer coisa muito breve que me feriu

de morte como a lâmina de um punhal acabado

de comprar. (Se trovejasse, podia ser um raio

a fracturar a falésia no espelho dos meus olhos.)


Hoje, porém, já não sei que palavras foram essas -

de um temporal assim recordam-se sobretudo os despojos

que as ondas espalham de madrugada pelas praias.




Maria do Rosário Pedreira