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segunda-feira, outubro 31, 2005

Jeito de Escrever

Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.

Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.

Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!

E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?

Silêncio.

Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.

Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.


IRENE LISBOA

Dir-te-ei

Dir-te-ei quem sou,
houve um tempo,
tive um sonho,
lembro-me do teu rosto,
a tua voz já existia.

E ele atravessa a rua,
passando pelo tempo,
de pedra em pedra,
com um cigarro na mão
para pedir lume
ao cigarro alheio,
que brilha no outro lado,
ao cimo dos três degraus.

Vai ser assim:
dá-me lume, por favor?,
e o cigarro encostar-se-á ao seu,
o lume passará de um para outro,
de uma pessoa para outra pessoa,
e então,
no meio da eternidade deserta,
será sim o dia de hoje.

Mas a noite é imensa,
quer dizer:
a noite do lugar e do tempo,
a noite da nossa solidão
- é imensa,
e apenas um pequeno órgão vivo
palpita algures,
vibra rapidamente,
e amortece-se,
e desaparece.

Então,
uma vez mais
a noite se levanta de nós,
e o que estremece é a carne,
a nossa,
cega e desamparada
- mas fremente
na sua cegueira e desamparo.

Sabes que estás só?
- pergunta a carne à carne-,
sabes que a noite se ergueu de ti,
como se fosses o seu próprio
e único talento,
e que esse talento te cerca
como uma atmosfera,
o morto clima que transportas em ti,
de um lado para outro,
ao longo das pedras,
ao longo de todos os lugares
do homem?

Ela sabe,
ou pelo menos
sabe que sabe.

E
é demasiado.

Por isso,
olha
e espera.

E vê de novo
a brasa que estremece
na escuridão
como uma planta
que crescesse
e florescesse na terra negra,
ou um animal
cujo calor abrisse uma brecha
no tempo frio.

A carne embriaga-se
com imprecisas metáforas de salvação
- que salvação?!
com um movimento subterrâneo de analogias,
e ele diz:
-vou pedir-lhe lume.

Vai através do bairro múltiplo,
o tempo que o escuro abafou,
e então
é como se fosse fora do tempo,
ou dentro de todo o tempo,

à procura do lume
para o seu cigarro.


Herberto Helder
Apresentação do Rosto

Construção

Construir-te verso a verso
Tijolo a tijolo de saudade.
Palácio que supuz noutra cidade,
Conquista que sofreu um vento adverso.
Cristal que me cegou quando te quis,
Luxúria do teu corpo onde não estive.
E só faltou que tu fosses feliz
Nesse intervalo breve em que te tive....


FERNANDO TAVARES RODRIGUES

Foi um momento

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não ?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve !...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
'Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço ?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.


Fernando Pessoa

Escotomas

Não sei o que é um espírito. Ninguém
conhece a fundo a luz do seu abismo
enquanto o vento, à noite, vai abrindo
as infinitas portas de uma casa
vazia. A minha voz
procura responder a outra voz,
ao choro dos espectros que celebram
a sua missa negra, o seu eterno
sobressalto. Num ermo
da cidade magoada escuto ainda
o rumor de um oráculo,
a febre de um adeus que se prolonga
no estertor dos ponteiros de um relógio,
nesse ritmo feroz, na pulsação
do meu sangue exilado que recorda
um abrigo divino. pai nosso, que estás
entre o céu e a terra, conduz-me
ao precipício onde hibernou a alma
e ensina-me a romper a madrugada
como se a minha face fosse
um estilhaço da tua
e nela derretessem, por milagre,
estas gotas de gelo ou de cristal
que não sabem ser lágrimas.


FERNANDO AMARAL

ANNABEL LEE

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.


Edgar Allan Poe

Um Lugar

Dentro de um mundo sem lei
De miséria, fome, incerteza
De coisas que nem eu sei
De falta de amor e clareza
De guerras, ódio, espingardas
De dor, de enganos, de espinhos
De sangue e poucos carinhos
De pátrias, bandeiras, fardas
E d'outras tristezas mais
Existe ainda escondido
Um lugar com coisas sãs
Com amor e inocência
Com paz, calma e alegria
Sem medos, com paciência
Com mares e mares de carinho
Com silêncio e devoção
E esse lugar, que eu quero
Está dentro do teu coração


DiAngellis

Alvorada

.
.


E de súbito um corpo! Alvorada sombria,
Alvorada nefasta envolta nuns cabelos.....
Eram negros e vivos. Quem sofria,
Só de vê-los?

Eram negros; e vivos como chamas.
Brilhavam, azulados sob a chuva.
Brilhavam, azulados, como escamas
De sereia sombria, sob a chuva...

Veio cedo de mais a trovoada:
O vento me lembrou
De quem eu sou.
- Alvorada suspensa! Contemplada
por alguém que chegou a uma sacada
e à beira da varanda vacilou.


DAVID MOURÃO FERREIRA

[VIAGEM NUNCA FEITA?]

- Naufrágios? Não, nunca tive nenhum. Mas tenho a impressão de que
todas as minhas viagens naufraguei, estando a minha salvação escondida em
inconsciências intervalantes.
- Sonhos vagos, luzes confusas, paisagens perplexas - eis (o que me
resta na alma de tanto que viajei.
Tenho a impressão de que conheci horas de todas as cores, amores de
todos os sabores, ânsias de todos os tamanhos. Desmedi-me pela vida fora e
nunca me bastei nem me sonhei bastando-me.
- Preciso explicar-lhe que viajei realmente. Mas tudo me sabe a constar-me que viajei, mas não vivi. Levei de um lado para o outro, de norte para
sul... de leste para oeste, o cansaço de ter tido um passado, o tédio de viver
um presente, e o desassossego de ter que ter um futuro. Mas tanto me esforço
que fico todo no presente, matando dentro de mim o passado e o futuro.

- Passeei pelas margens dos rios cujo nome me encontrei ignorando. Às
mesas dos cafés de cidades visitadas descobri-me a perceber que tudo me sabia
a sonho, a vago. Cheguei a ter às vezes a dúvida se não continuava sentado à
mesa da nossa casa antiga, imóvel e deslumbrado por sonhos! Não lhe posso
afirmar que isso não aconteça, que eu não esteja lá agora ainda, que tudo isto,
incluindo esta conversa consigo, não seja falso e suposto. O senhor quem é?
Dá-se o facto ainda absurdo de não o poder explicar. . .


Bernardo Soares

Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.


Ary dos Santos

Para um amigo...

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e ternura lenta.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.


António Ramos Rosa

Esta Velha Angústia

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!


Álvaro de Campos

A Meu Favor

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


ALEXANDRE O'NEILL

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta...

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ser senão o visível!


Alberto Caeiro

Acordar Tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia


Al Berto

segunda-feira, outubro 24, 2005

[ Mulher ] 3

“Se já não como
há mais de quinze dias
o que é que eu estou,
para aqui, a regurgitar?”
Pergunto à minha sombra
cativa e empenhada
em furtar-se ao meu olhar
na promiscuidade
das penumbras do costume.

A minha exaustão exprime-se
num único suspiro
e traduz a incapacidade
que me assiste
em cingir ao peito e abraçar
as minhas mortas amadas,
as minhas irmãs
Florbela e Natália, juntas.

Já consegui entender
porque amo tanto a Mulher:
É nEla que vivem todas,
adoráveis e... adoradas.
Daí eu dar graças aos céus
por todos aqueles
que almejam reinventar-se
entre o ser de Afrodite
e o sentir de Narciso
... graças pelo que,
de mais adorável na Mulher,
ama, chora e reluz
a dentro da minha alma,
muito felizmente
hermafrodita.


Luís Melo

sexta-feira, outubro 14, 2005

MATER

Eu não fui sempre assim
mas a minha mãe
sempre foi a noite...
sem leito,... sem sossego.
A minha mãe sempre foi
a que me conta histórias
que nem sempre me custam ouvir
nem sempre me adormecem.
Ainda assim são quase silêncios
mas tão mansos que não ferem
nem interferem com nada.
A minha mãe
é o único medo do escuro
que já não me massacra
e, ao invés, revolve-se em mim
como o primeiro carinho
quiçá... um carinho cego.

A pesar na minha alma
de rapazinho assombrado,
as luzes plácidas da noite;
e eu não me canso
de lhe inventar
afectos e encantos maternos.
Ai mãe, madre-minha-pérola,
meu nácar e matriz,
minha noite velada
e mártir da euforia
de todas as minhas mágoas;
Ai, mãe como eu quero...
mesmo, mesmo, tanto, tanto,
encomendar-te um sonho.
E que seja um sonho cego...

Já nem tudo me chega
desta noite ténuescente
talvez porque a lucidez
se me obstine, caprichosa,
pela miopia a dentro;
talvez que a mira lucífuga
de um certo entendimento
denuncie o meu querer
que na alma se emprenha.
E só essa noite maternal
se pode ter por testemunha
de uma tal consciência;
que da sua penumbra
emana para mim o presságio
de eu não claudicar
no intento incendiário
de me oferecer, vivo. Sim!,
reafirmar-me pelo parto
do possível em excelência,
do desiderato de sublimação
a brotar do meu fogo.
Porventura um fogo cego...

É por aqui que se burila
um destino remanescente
para os meus passos.
A tornar-se insana a ousadia
de reservar para mim
o recôndito peito da noite.
Se não estou em erro,
levo para qualquer eternidade
o ventre prenhe de um credo.
Ainda que seja credo... cego.


Luis Melo