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sexta-feira, novembro 30, 2007

Eras tu a claridade



Ingrid Sehl - Bright Yellow Flower on Papyrus


O tempo, subitamente solto
pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade
a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei
antes de te conhecer.
Eram os teus olhos,
labirintos de água,
terra, fogo, ar,
que eu amava
quando imaginava que amava.
Era a tua
a tua voz que dizia
as palavras da vida.
Era o teu rosto.
Era a tua pele.
Antes de te conhecer,
existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens
que olhava ao fim da tarde.
Muito longe de mim,
dentro de mim,
eras tu a claridade.


José Luís Peixoto

(Agradecimento a quem publicou este poema no seu Hi5 e desse modo me permitiu desfrutar dele. Obrigado por nos teres apresentado...)

quinta-feira, novembro 29, 2007

Amigos



Pablo Picasso - The Dance of Youth


Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis o que permite que o objecto dela se divida em outros afectos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.

E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências...

A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.

Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.

Muitos deles estão lendo esta crónica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.
Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não o declare e não os procure. E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.

Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo!
Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles. E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem-estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.

Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos!

A gente não faz amigos, reconhece-os.


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

quarta-feira, novembro 28, 2007

O sul do tempo

Salvador Dalí - Untitled (1942)


o olhar desfeito
na coerência do invisível

o remoto
lugar de areias ardentes
onde afogadas as mãos se soltam

o nome dos ventos
o sul do tempo

o sentido rumor
dos séculos imperfeitos
que te escondiam

esperavas
sob a mais alta estrela

o mundo a cercar-te
como se eu te levasse
o livro

pus o meu nome
na roldana do vento

era cedo
como nunca mais
voltaria a ser


gil t. sousa
poemas
2001

flor de sal

Joan Miro - Femme II (1965)


não chames por mim
levo nos olhos queimados
o fim dos desertos

não te posso escutar
na branca solidão dos dias
porque até no meu silêncio
te matei

não chames por mim
levo nos passos
o veneno da Lua

a espuma do tempo
sai-me das mãos vazias
e apaga o trilho
por onde as vozes
podem chegar

não chames por mim
levo o peito tão rasgado
de ausência!

e no meu coração
só há
uma vermelha flor de sal
que já ninguém
pode tocar


gil t. sousa
poemas
2001

terça-feira, novembro 27, 2007

Dá-me

Andy Warhol - Female Figure (1959)


dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!


Carlos Edmundo de Ory
“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997

segunda-feira, novembro 26, 2007

Sei

Heinz Kirchner - Village By the Bay II


Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego

Tu
se o ar é fresco

eu
se deixo de respirar
subitamente


António Reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959

Sábado

Diane Romanello - Weeping Willow


Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água.


Antonio Gamoneda
livro do frio
(5-sábado)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999

Arte do regresso

Claude Monet - Sunset in Venice


Tudo o que aconteceu no passado
está agora presente como uma fogueira.
A tua ausência permanece.
A árvore oscila entre o mar e a terra,
os ramos quebram-se nesse vento funesto,
vejo que passas com as mãos a arder
e a brancura intensa a cobrir-te a cabeça.
O rosto é ainda o último refúgio.


Amadeu Baptista
arte do regresso
campo das letras
1999

sexta-feira, novembro 23, 2007

Sonho

Henri Rousseau - Le Rève

Estalará a ilha de recordar
A vida será um acto de condor.
Prisão
Para os dias sem retorno
Manhã
Os monstros do bosque destruirão a praia
Sobre o vidro do mistério.
Manhã
A carta desconhecida encontrará
As mãos da alma.


Alejandra Pizarnik

Caminho dos espelhos

Eva Carter - Free to Fly


(Ticiano)

E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro no limite afiado da noite.
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esbatida pela chuva.
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona no umbral.
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e afugenta a menina que foste.
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, bebia, recordo.
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito. Por isso falo.
A noite parece um grito de lobo.
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela que dorme num país ao vento.
A minha queda sem fim na minha queda sem fim onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu embora me referisse à aurora luminosa.
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada que não cessa de passar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que a minha voz diz.


Alejandra Pizarnik
de "Extracção da Pedra da Loucura"
1968
tradução de Luciana Leiderfarb

terça-feira, novembro 20, 2007

Infância

Lisa Kowalski - Levitate



Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.


Carlos de Oliveira
de Cantata

Ese temido atardecer

Salvador Dalí - Womam with a Head Full of Roses


Não são apenas as sombras
ou a cor das sombras.
Há um rio de aromas
que me conduz ao lugar do sangue,
a essa veia propícia
- a fonte oculta que em mim brota -.
Há um jardim escondido
nos crepúsculos.
Aí cresce a rosa,
a suave mordedura.


Beatriz Schaefer Peña
En la Alta Noche, 2003

A tua boca adormeceu

Salvador Dalí - Clock Explosion


A tua boca adormeceu
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.

Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.

E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de oiro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.

As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.

Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de oiro
que além flutua.


Artur do Cruzeiro Seixas

Aladas, as palavras

Piérre Auguste Renoir - Bordighera


Tenho a boca cheia de pássaros,
asas em saliva prisioneiras,
doidas por voarem nas palavras
em bandos de poesia à solta
rasgando tímpanos de azul.


Ana Rita Calmeiro

Dúvida

Alfred Gockel - Snoozing Nude


Que me restou da vida senão mais
que uma amalgama de histórias tristes para contar?

- Ainda hoje, não sei se chore tudo aquilo que me faltou,
ou se tudo aquilo que me bastou !


Gabriela Moura

segunda-feira, novembro 19, 2007

Lisboa




















Lisboa tem um vestido azul feito de
mar e guerra.

E cheira a laranjas maduras.

Quando as gaivotas trazem no bico
os primeiros pedaços de sol para acender o dia,
Lisboa deixa correr os cabelos pelo Tejo
e o povo pelas ruas.

À mesma hora, a coragem agita no sangue
duas grandes asas inquietas.

Por todas as janelas destruídas, já o mar entrou,
derrubando acácias,
cantando hinos de espuma

E porque toda a coragem é necessária,
toda a esperança é legítima.

quinta-feira, novembro 15, 2007

Um dia a noite há-de dizer-te...

Salvador Dalí - The City of the Drawers

um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo

lá fora o meu desejo assassina o mundo
a noite não existe porque a deixaste
no movimento de pedra dos meus braços

daqui onde estou quem te era
não se vê nada do amor

Pedro Sena-Lino

Isto foi um erro...

Salvador Dalí - Untitled
Isto foi um erro,
estes braços e pernas
que já não funcionam

agora está partido
sem espaço para desculpas.

A terra não conforta,
Apenas cobre
Se tiveres a decência de ficar quieto

O sol não perdoa,
Olha e continua a andar.

A noite infiltra-se em nós
através dos acidentes que
provocámos um ao outro

da próxima vez que cometermos
amor, devemos
escolher primeiro o que matar.


Margaret Atwood
Tradução: Maria Sousa
Poema retirado de there's only 1 alice

Salvador Dalí - Woman with the Head Full of Roses

Se é assim que desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
e se eu, de súbito te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro brilho...


Se eu te embaraçar – ai de mim –
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva
e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem...


Rabindranath Tagore

Gostava de estar sempre ao pé de ti

Marc Chagall - Amoureux (1956)

Gostava de estar sempre ao pé de ti
mas nunca estou mais perto do que quero
do que longe de ti quando a ti te desejo.
De dia embrulho-te num vestido escuro
para olhos estranhos me verem.
Quero ser sombra se tu estiveres ausente
tal como tu és sombra ao pé de mim.
desde que te amo estou só completamente.


Ulla Hahn

quinta-feira, novembro 08, 2007

Olho uma flor

Pablo Picasso - Evening Flowers


Olho uma flor, recorda-me de ti.
Apetece-me colhê-la, mas não o faço.
Quando quero estar contigo, visito-te no meu jardim.


Luís Ene

Ainda te falta

Salvador Dalí - The Ballet of the Flowers

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito


Albano Martins
Escrito a vermelho

Perdemos repentinamente...

Natasha Wescoat - Lyrical Glance


Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou


José Tolentino de Mendonça

Entre o sempre e o nunca

Pablo Picasso - The Old Guitarrist (1903)

Entre o sempre e o nunca
é que as coisas acontecem
um segundo sem fôlego
quando menos se espera
o mundo transforma-se

afundado em si próprio
sete corações abaixo
é que de repente se imagina
uma época em que as pedras
começam a sangrar


Pia Tafdrup

quarta-feira, novembro 07, 2007

Do lado do silêncio

Pablo Picasso - Child with a Dove (1901)

Gosto de espreitar o teu sono de criança, à noite, quando dormes alheia a tudo, e eu fico a ouvir a tua respiração e a alisar os teus cabelos. Às vezes, chego a pensar que é um desperdício ir dormir, em lugar de ficar a ver-te dormir, porque o tempo voa e em breve já não serás criança. Nestas noites, como diz a lei, tenho-te à minha "guarda", o que é um prazer insubstituível e a que alguns chamam direitos e outros chamam deveres.
Gosto de acordar de manhã, quando, ainda antes do despertador tocar, oiço o som do Canal Panda na sala, e fico a saber que tu já acordaste e que segues á risca o ritual estabelecido, e que a seguir irás fazer o teu pequeno-almoço e vestires-te para a escola. Mas, apesar disso, gosto de te recomendar que faças tudo isso e não te esqueças de lavar os dentes, sabendo que não te esqueces mas também gostas de ouvir-me dizer-to, porque essa é uma forma de saberes que te "guardo".
E embora eu saiba que não há carros à vista quando tu atravessas a rua para a porta da escola, vou contigo de mão dada, para que sintas ou para que eu finja para comigo mesmo que continuo a guardar-te até que a porta nos separe e outros fiquem contigo.
Porque há sempre uma porta que se fecha e que nos separa, ao contrário da casa, onde a porta do teu quarto e a do meu estão sempre abertas. Há sempre esta porta que se fecha sobre ti, outros que te falam e te escutam, enquanto eu caminho na tua ausência e na lembrança da tua voz, outros que sabem de ti o que eu ignoro, outros que por vezes se cansam de ti enquanto eu só te espero, outros que te vêem e te tocam enquanto eu olho as tuas fotografias espalhadas pela minha vida. Tão perto e tão longe de ti. Tão fundo e tão ausente. Tantas esperanças. Tantos anos, tantos danos.
Fecho os olhos e sonho. Tu caminhas comigo, de mão dada, num campo onde não há mais ninguém, e procuramos musgo e pinhas. Há uma gruta num pequeno bosque de que eu finjo não conseguir nunca encontrar a entrada sem ti. É o nosso segredo e lá estaremos protegidos do mundo e dos seus males e perigos. Entro por aí contigo. Adormeço e para sempre viverei contigo nesta gruta. E és tu então que me proteges.

Miguel Sousa Tavares
excerto de "Não te deixarei morrer David Crockett"

segunda-feira, novembro 05, 2007

Ontem

Alfred Gockel - Endless Love
1

Ontem pensei
no meu amor por ti.
Recordei
as gotas de mel nos teus lábios
e lambi o açúcar
das paredes da minha memória....


2

Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.
Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silencioso?
Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?


Nizar Kabanni

Madrugada

Wassily Kandinsky - Cercle Jaune

Os lábios e as mãos do vento
o coração da água
um eucalipto
o acampamento das nuvens
a vida que nasce cada dia
a morte que nasce cada vida.

Esfrego as pálpebras:
o céu anda na terra.


Octavio Paz
In Antologia Poética
Tradução de Luis Pignatelli

Eu sou aquilo que falta

Edvard Munch - Despair (1904)

Eu sou aquilo que falta
ao mundo em que vivo,
aquele que entre todos
jamais encontrarei.
Rodando sobre mim mesmo agora coincido
com o que me foi tirado.
Eu sou o meu eclipse
a revelia, o desconsolo
o objecto geométrico
a que para sempre deverei renunciar.


Valério Magrelli
In A espinha do P

Não me acordes

Pablo Picasso - Sleeping Nude

A noite deita-se comigo
na fenda do tempo

Os dedos do luar
penteando os cabelos do sonho

Oh, meu amor
podes passar pelo meu sonho
podes ficar no meu sonho
mas não me acordes


Yao Jingming

Escavo o Rasto dos Teus Passos

Rabi Khan - Slow Dance

o mundo derrama-se
na cavidade que fica,

volto a amar-te
no limite febril de mim mesmo,

tu folheias, agora terra fina,
os meus remotos
testemunhos.


Paul Celan

Entre o demasiado e o pouco demais

Asha Menghrajani - Yin Yang

Entre o demasiado e o pouco demais
situa-se o possível
onde o sábio
construiu a sua morada
Mas o poeta acrescenta-lhe janelas e varandas
Que dão para o invísivel

A poesia também é sabedoria
Mas retém as lições da loucura.
Ela não é toda a vida
mas um olhar outro sobre a vida
não é a morada
Mas o que torna possível morar nela

A poesia é o excesso do possível
o reverso do demasiado e do pouco demais
A concreção visível da ausência.


R. Bréchon

Buracos negros

Susan Norris - Inked Universe

O que nos une é não nos entendermos
tu aí eu aqui - nossa via é diferente:
O teu já foi o meu ainda há-de ser
são dois buracos negros no presente
que é nosso como o sonho antes do dia
quando sabemos já que estamos a sonhar
e que connosco brinca um pouco ao vento
até aqui e ali cada um se encontrar.


Ulla Hahn
Tradução de João Barrento