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quinta-feira, novembro 17, 2005

Entropia


1.

Moribundo jaz o dia..., é noite!
A lua já no horizonte, ferida e viva;
As estrelas bem distantes arrefecem,
mas entretecido na roca o amor gira.
Fé e raiva são uma fortaleza inamovível
que na lama a dor vão modelando
como um boneco onde se grudam paixões esganadas!
Há fogo na noite e a língua matreira
é a água do dia de essências e desígnios!
Há talvez um pavor íntimo e perverso
num súbito e veloz frémito de natural melancolia
que um etéreo movimento destrói
e uma paixão desabrida atrofia...
Este rodar vai novamente repetir-se...:
à luz do sol dúvidas inúmeras...,
à luz da lua certezas indestrutíveis.
Aos poucos ressuscita a líquida transparência...
(...)


2.

Algo viaja entre tormentos e marés
como uma casca de noz, a pioneira,
lágrima rebelde e musicalmente trémula...
De momento sente-se apenas ingénuo infante,
mas vestindo a armadura da arte de guerrear...
Solta também um primeiro e singelo sorriso,
esboço de fraldas e rendas de filho primogénito,
um simulacro de caduca e efémera realeza.
Neste baloiço aprende a domesticar o silêncio
e a sugar o tutano à íntima transcendência.
Num palco vistoso, previamente encenado,
representa o papel de vítima insolente,
aniquilando o ser e a entrépida sabedoria.
Liquefeito esboroa-se numa ideia universal
orando a um ícone distante e representativo
numa posição restrita e assaz neurótica.
Pensa que qualquer penoso sofrimento
terá de ofertar num altar como feliz benemerência,
vergastando-se ao som do canto gregoriano.
De olhos reluzentes e fixos nas velas acesas
ajoelha e dirige este sacrifício oco e mesquinho
a uma luz dum ser de amada futilidade!...


3.

Seguro uma caneta pungente, satírico
e escrevo desmesuras num papel inútil.
Os pensamentos estilhaçam-me, espicaçam-me.
Estou abrigado sob um fluxo avassalador,
no qual as ideias surgem como vãs demandas
onde meu ser aparecia já enterrado.
No além-túmulo anjos, gusanos e demónios
sarapintam-me a cara com cera derretida
e plastificam o meu corpo numa fotografia tipo passe
para o torneio da disputa final dos condenados.
Grudado a uma vidraça bem gradeada
vou fingindo um dia a dia num tempo ilimitado,
mas onde estampo um incerto e estúpido futuro.
Zanga-se comigo um duro furor de mim.
Numa doida paixão e num eufórico folclore
tresandam junto a meus pés a compaixão e a fraqueza.
Agora sou bobo e personagem sem respeito
pelo absurdo, pelo caricatural, pelo grotesco
e estou preso por um alfinete ao existir e à estrofe
que rima com todos os torpes e fúteis arcaísmos
Numa doida paixão e num eufórico folclore.
O meu rosto enquadra-se num folhetim ou repertório
(dissonante...


4.

Vai-se andando aos tombos...
Nasce o sol. O galo canta.
O relógio desperta a sonolência.
A criança berra em choro inconsolável...,
precisa de carinho e leite desmamado.
Entretanto pelas esquinas perdidas,
coçando a lenta agonia e a duvidosa eternidade,
corre o tempo sem parança...
Ressoam vozes e passos já ouvidos,
saltitam pardais sempre famintos
e o chiar dos carros de bois tramela efemeridade.
As horas na torre estão ininterruptamente a soar.
Uma pobre adolescente, ao tempo indiferente,
entoa lânguidas cantigas e deixa ais no ar.
O mundo dos Homens está cheio deste rude penar,
ironia ou trama duma novela excêntrica
e todos sorriem deste cómico e técnico abuso.
Nas crostas de chagas bem recentes
reencontram uma natureza fria e murcha
e num dos bolsos esquecido e amarfanhado
o talão do imperativo Bilhete de Identidade.


5.

Um velho de bengala vem cambaleando
e chega morto ao meio daquele beco.
Na torre do castelo as horas sempre a soar...
O velho fora enganado por uma falsa partida!
Um miúdo, companheiro habitual,
envolve o corpo hirto num choro amante
rolando signos e lágrimas num som fúnebre.
Irredutível o tempo parece nunca se escoar!...
A luz dum candeeiro acende-se ali perto
alumiando a valeta e o corpo com luzes funestas.
No cimo do morro os ponteiros do relógio gigante
movem-se sem parar! São horas moribundas,
pois já não existe tempo para desvendar.
De súbito a fraca luz apaga-se...,
e duma fresta sai-em raios orvalhados,
que prenunciam o último refúgio ou esconderijo.
Tique..., toque..., tique..., toque...,
e o tempo na voz ressuma sem descanso!...
Os fogachos desta luz aparecida desvanecem-se
e um corpo cheio de vida faz repentina marcha-atrás!...


6.

As primeiras palavras emitem sinais...,
cortesias breves de um ingénuo sorriso,
mas são pérolas de fogo e flores
pétalas ardentes de estrelas cintilantes
muito tempo antes de o LOGOS as colher.
As primeiras palavras soltam rios,
devir de um afecto trazido pelo vento.
As primeiras palavras restolham beijos
dum íntimo prazer que cicia arrebatamento,
fluir onde se gera o húmus primacial.
E há encantos a vogar num barco e num Ser
que do amor emergem a escutar o mar.
Sem as palavras esse Ser seria feito de coral
e irremediavelmente uma matéria abstracta,
um eu que em si não se reconhece
e uma alma alienada que não se estende
ou fruto podre de reprodução crepuscular.
Mas este barco e este Ser não vão parar!
Ponho-me a contar signos pelos dedos trementes
e o tempo em sofreguidão a querer passar.
Sem esta teia de sinais fica uma mágoa permanente
semelhante a qualquer apêndice que um deus cá deixou!
E o meu lindo barco nunca há-de parar...,
apesar dum outro ser o pretender ultrapassar!
Oiço a deixa e encolho-me à beira da vertigem...


Abílio Sampaio
in Folhas Soltas

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