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quinta-feira, abril 24, 2008

Estavas sentado



Estavas sentado e havia uma paisagem agreste

nos teus olhos: as nuvens a prometerem chuva,

os espinheiros agitados com a erosão das dunas,

um mar picado, capaz de todos os naufrágios.


O teu silêncio fez estremecer subitamente a casa -

era a força do vento contra o corpo do navio; uma

miragem fatal da tempestade; e o medo da tragédia;

a ameaça surda de um trovão que resgatasse a ira

dos deuses com o mundo. Quando te levantaste,


disseste qualquer coisa muito breve que me feriu

de morte como a lâmina de um punhal acabado

de comprar. (Se trovejasse, podia ser um raio

a fracturar a falésia no espelho dos meus olhos.)


Hoje, porém, já não sei que palavras foram essas -

de um temporal assim recordam-se sobretudo os despojos

que as ondas espalham de madrugada pelas praias.




Maria do Rosário Pedreira




terça-feira, abril 01, 2008

Não colher as mãos





















não colher as mãos, alimentar os objectos.

tocá-los devagar, deixando o fio correr desde

o ar até à ponta dessa sombra onde repusa

o mundo. tenho a certeza de que algo se

mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.

sei que falas com as coisas. que tens um pacto

com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes

hereditários gestos. que nem que quisesses me

poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que

inclino as mãos quando percorro as cidades e as

esqueço. esta pequena saudade é uma floresta

de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.






Rui Costa