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sábado, dezembro 31, 2005

Duas linhas apenas

Se se apega a ti o pó das palavras mortas,
lava a tua alma no silêncio



Rabindranath Tagore

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Sem antes nem depois

Quando a chama retoma o lugar das cinzas
na lareira adormecida,
quando os pássaros voltam aos ninhos
deixados à mercê do tempo,
quando a terra num pousio pasmo
acorda remexida, já fecundada,
quando os filhos crescem
e o espaço em nós leveda,
e engrandece, de tanto amor,
os livros empoeiram-se
as páginas amarelecem
o poema fica sufocado no meio da palavra.
Os amigos, quero-os á minha volta
Na mesa farta de versos que se soltam
Nos sabores que todos trazem
Nas gargalhadas que todos provocam
Nos crepes e biscoitos a escorrerem paladares.
Nas festas e nos encontros.
Nos momentos sem antes nem depois.
Quando a chama retoma o lugar das cinzas
naquela fornalha de agora
o gato ajeita-se no cesto da lenha
com um preguiçar inigualável a nenhum mortal.
A casa veste-se de feitos e factos.
Ao paladares fazem-se de poemas
E os momentos reproduzem-se.


Adelaide Graça
In – NO VÃO DA AUSÊNCIA

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Férias é quando ainda se faz menos do que normalmente se faz...

quarta-feira, dezembro 21, 2005

[ Vejo ]

Abro os olhos
vejo as coisas,
vejo tudo em volta...
Cá dentro,
vejo-te a ti.

Fecho os olhos
vejo o nada,
vejo tudo
de não ver
e assim mesmo
vejo-te a ti,
dentro de mim,
a chamar-me
lá de fora.


___________LuMe
Luis Melo

segunda-feira, dezembro 19, 2005

matei o tempo...


o silêncio escutei-o à beira do mar
pisando pausadamente a areia branca e húmida

o céu fechava-se a cada passo meu
senti lentamente a libertação do dia,

o sol teimava partir
deixava o reflexo nas águas do mar

o momento era de lembranças
estranhas, rasgadas no meio de um olhar

lembranças vindas da música
do ruído das ondas do mar,
sons dedilhados e longínquos

luz negada na sombria terra
inflexível à brisa que perpassa

um dizer que estava ali, onde acordam
deleitáveis os dias sem receios
respirando pensamentos inquietos

e vi partir a bruma encolhida nas nuvens
nuvens espantadas, sem sol.

no silêncio matei o tempo.


l.maltez

ABSURDIA

[ 2 ]

Num mural leio escritas
a tinta espessa,
aparentemente absurda
e, enfim, de veludo,
leio, sim,
como que sânscritas
palavras diligentes
a informar que:

"Os homens são sombras,
fúteis e abundantes,
da mulher que dança
ao som da luz do sol."

Leio mais:
"Qualquer sombra
bebe do chão o aparente
da cor que emerge
até do mais absurdo
dos veludos".
Leio, como já disse
o inverosímil sânscrito
no absurdo da tinta,
no moral circunstante
ao meu olhar.

É então que pergunto:
"Meu Deus, onde estou?"
e a única resposta
é um qualquer colapso
no termo de uma cassete
dentro da máquina;
essa mesmíssima
a que chamam de Vídeo.
Impõem-se, explicativa,
uma porção da realidade;
tosca a porção
abrupta a realidade
e em suma
o que de mais singelo
se faz subtraível
como fita escura e trilhada
nas entranhas de um engenho.

Imagens, sons,
verdades diversas
e mastigadas por desventura;
desvirtuadas,
como veludo absurdo
aparentemente como tinta
e palavras num mural.

"Os homens são sombras..."
e eu tenho medo
de confundir o fim
com outra anomalia
engenhosa.
Tenho medo
de não entender
e de ninguém avisar
quando tudo, de facto,
acabar.

__________________LuMe
Luis Melo

abismo

deste abraço
ao avanço da estrela mais íngreme
- apenas um passo,

os lugares menos reconhecíveis,
as lembranças mais frouxas
e uma voz rouca
fecham sobre mim seus lábios de tempestade
no pálio pálido da madrugada,

é tarde,

te amo


Pedro Lage

Comecei a ler...

Comecei a ler quando de noite apenas te
Imaginava na nudez dos meus sonhos
ardendo um calor e me chamavas água

ainda hoje te chamo metáfora
(e a tua voz não se calou)


Pedro Sena-Lino

Anjo I

É possível amar-te
sendo tu o anjo que traduz
a noite nas palavras mais
de carne ou de estrelas,
o significado perfeito da geometria
com que articulo a memória
nunca parada dos dedos
que escrevem.


Pompeu Miguel Martins
In O livro do anjo

terça-feira, dezembro 13, 2005

Escrever

Escrevo
para lembrar
o que quero esquecer;
para divulgar
o que quero esconder.
Escrevo
para lembrar
o que não existe,
para saudar
o que foi e não é.
Escrevo
para me esquecer de ti
e para lembrar
que não há Eu sem Ti.
Escrevo
para me afastar de ti,
para esquecer
que estás sempre perto
de mim.
Escrevo
para seres só meu,
por breves instantes,
e te ver partir
nos regaços alheios
sem sentir,
sem ser,
sem nada.
Por isso escrevo.
Para ti. Para mim.
Porque sufoco.
E porque sim.


Rita Sá
12/11/95

Concerto para os peixes que habitam os meus sonhos

O som dos grilos é estonteante
e o marulhar junta-se
nesta orquestra de cio
estranha atitude
destes insectos que migraram
dos campos prenhes de rubras papoilas
para virem escutar os peixes
É caótico este momento de êxtase
em que a lua nua de luz
se mostra em toda a sua nudez muda
e excitante
porque toda a natureza desperta
da letargia que o verão
provoca
trazendo cheiros distantes
e persistentes
porque
as narinas fremem
de desejo fundeado
neste mar
onde campeiam
espumas
e o que resta de nós
servirá de repasto
aos pássaros loucos
que se precipitam em voos rasantes
aqui mesmo ao lado do presente incerto
porque não sabemos se
o futuro nos levará
em espiral
rumo ao novo mundo
que fora anunciado por ti


© Rogério Saviniano Telo
Funchal

Soletrar o dia

Tenho tudo por dizer e gasto palavras
para lá chegar. Não sei se me afasto
ou se chego perto. Se alguma vez rocei
a pele do essencial. E pergunto-me sempre
para quê estas palavras que me teimam.
O passado não é o que está feito,
mas o que palavra alguma fará de novo.
Por isso leio sempre no futuro, mas não sei
para que lado do tempo escrevo. E se soubesse
que arrasto as letras como um caranguejo
diria que só tenho esta mão de palavras.
Soletro os dias em cada coisa que me olhar
quando me sinto a vê-la. É tudo.
E não há desculpas para o que faço.


Rosa Alice Branco

Sonho nada...

sonho nada
sonho a chuva,
e o âmago denso das pedras,
e soturnos olhos vegetais por entre
musgos e muros e quintais.
sonho chuva e água e humidade
e deuses e demónios ancestrais
e o sol do deserto. E sou miragem
na insustentável, branca claridade.
sonho a terra, ebúrneas nuvens,
limbos e rasgos de horizontes
a sangrar sonho e luz e escuridão,
na boca ávida das fontes.
sonho-me antes do meu sonho
e antes desse, em lava e fogo
ainda outros sonhos não sonhados,
em terra e água e luz eu os componho.
e nada a não ser luz e terra e água
e nada sem ser eu, em carne e lava
e nada que não fira e sangre e lave
nada mais neste sonho, senão mágoa.


Rosa Bento

Sem nada de meu

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


Rui Knopfli
Em Mémoria Consentida

TRISTEZA

Ser o segredo íntimo do pranto
cerzir as mágoas sem nenhuma esperança

carpir cada palavra abandonada
com raiva e ofício muito antigos

deixar o poema ser um cão vadio

Chorar desmoronando-se por dentro
ser a curva apertada onde se morre
o abismo mais puro
o não sonhar

tristeza de raiz melancolia
asa morta no vento do destino


Rui Namorado
In Sete Caminhos

segunda-feira, dezembro 12, 2005

UMA PALAVRA a F. Pessoa

[ Palavra ] 2


"As palavras são para mim
corpos tocáveis..."
e por aí a diante
como ditame emanado do Nando
( um entre mestres )
a quem, regularmente,
rogo por uma bênção,
razoavelmente PERSONA_lizada.
As bênçãos pedem-se
aos vivos e aos ultra vivos
e colhem-se com alguma fé,
nomeadamente, à flor da pele.
Tenham-se pois
palavras para corpos
bênçãos à flor da alma
e a questão a ser, por hipótese,
uma forma subtil
de colher-se a vida,
ou esse jeito tão especial,
no fundo, à superfície,
mas sobretudo,
na excelência provável
de se vestir o que se é.
Envergar trapos, sim!,
revestir de pele-poesia
esses corpos tocáveis.
Ainda mais, de novo:
em cingir malhas, costuras,
tecer frases, textos,
enfim, texturas.
Absoluto por ambíguo
a forjar-se a naturalidade
de cada vocábulo operar
no tecido da ideia
a forjar-se o subtil
de se vestirem os sentidos
pelo toque, até se possível,
o pleno da rede táctil
que sempre será o destino
da poesia.
Onde estamos ?
Para começar, estaremos,
quem sabe(?), entre
os que dificilmente se furtam
ao sorriso num tempo certo
como pelo intuir
de uma porta secreta
no eco de uma verdadeira voz:
"As palavras são...
corpos tocáveis..."
Pois ... e ao ter-se a porta
porque não exercer
o arrojadíssimo direito de
- destrancar -
e, porque não(?),
dar aquele passo em frente,
que é dar sem perda
é estender braços como ventos
bandeiras como vagas
ou só como asas de gente
em gestos de Pessoa
na ideia utópica
de, por fim, acreditar.

_______________________ Luis Melo

terça-feira, dezembro 06, 2005

De tudo, ficaram três coisas

Para ti que és mais do que uma amiga..
Feliz Aniversário Maninha...



De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de
terminar...
Portanto, devemos:
Fazer da interrupção, um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...


Fernando Pessoa

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Eu quero um colo

Eu quero um colo, um berço,
um braço quente em torno do meu pescoço,
uma voz que cante baixo
e que pareça querer fazer-me chorar.
Eu quero um calor no inverno,
um extravio morno da minha consciência.
E depois, sem som,
um sonho calmo,
um espaço enorme como a lua
rodando entre as estrelas.
-
-
Bernardo Soares
Livro do Desassossego

Adiamento


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...


Álvaro de Campos