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quarta-feira, novembro 30, 2005

Questões

Por onde andamos,
se é que isso interessa?
Por onde seguem
estes nossos passos?
De onde nos trouxe a ironia
dos descompassos?
Não chegam respostas
e quem paga é pobre,
é a alma que tem olhos
mas nunca terá barriga.
Da regularidade destes factos
o poema a prescrever
como um fardo bissexto
que, fatalmente, se arreia;
...uma carga que, por fim,
se depõem no chão
muito despretensiosamente.
E, no entanto,
o espantoso de tudo o mais
está nos olhos de quem lê
a razão inarrável
mesmo em desespero
mesmo na insaciabilidade
que havia de ser
o pedaço de tempo
entre a alma e o fim.

Luis Melo

GESTO AMAR

Estendo os dedos à procura do vento das tuas mãos.
Á tua espera, folheio as janelas no rasto da Lua.

E, silenciosamente, entrego-te o mar

neste poema que não deixo ser pedra de maresia.

(Amordaço as lágrimas)


Sandra Costa
In Sob a luz do mar

A Última Fala do Palhaço

- Deixem-me ser eu
um instante, ao menos...!
Ainda vale a pena!
Deixem-me vir à cena
em primeiro lugar,
a rir ou a chorar
(a mesma coisa afinal...)!

Deixem-me, antes que morra,
demolir a masmorra
que eu mesmo construí
com lágrimas e sangue
e, embora exangue,
ser só eu, tal e qual!


Saul Dias
(artista plástico e irmão de José Régio)

SEMPRE ASSIM FOI ..

Olhámo-nos os dois.

Que estranha e penetrante sensação
de perpétua felicidade!

Depois ..

Nas coisas do coração
sempre assim foi:-a Ilusão
é a única realidade.


Silva Tavares
In Casa Vazia (1946)

Direi que amo

Direi que amo
direi mel
saliva

Direi ferida
direi lábios
madressilva
Direi febre
flancos
ambarina
Direi
e sob as palavras oiço
nenhum rumor de lume


Soledade Santos

SINTO OS MORTOS

Sinto os mortos no frio das violetas
E nesse grande vago que há na lua.

A terra fatalmente é um fantasma,
Ela que toda a morte em si embala.

Sei que canto à beira de um silêncio,
Sei que bailo em redor da suspensão,
E possuo em redor da impossessão.

Sei que passo em redor dos modos mudos
E sei que trago em mim a minha morte.

Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus actos,
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(Poesia I)

terça-feira, novembro 29, 2005

Para Ti


Foi para ti
Que desfolhei a chuva
Para ti soltei o perfume da terra
Toquei no nada
E para ti fui tudo
Para ti criei todas as palavras
E todas me faltaram
No minuto em que talhei
O sabor do sempre
Para ti dei voz
Às minhas maõs
Abri os gomos do tempo
Assaltei o mundo
E pensei que tudo estava em nós
Nesse doce engano
De tudo sermos donos
Sem nada termos
Simplesmente porque era de noite
E não dormiamos
Eu descia em teu peito
Para me procurar
E antes que a escuridão
Nos cingisse a cintura
ficámos nos olhos
Vivendo de um só olhar
Amando de uma só vida


Mia Couto

EXÍLIO


Ele parte no inverno, quando os dias são curtos
e os sonhos dos homens têm lobos e crespúsculos;
com ele vai a concha do destino errante – e o
vento empurra-o para o labirinto de vozes que
essa concha encerra. Perde-se. Um deus rápido ace-
na-lhe, de passagem, com a visão da primavera. Os
ramos secos do horizonte, brilhando sob a fria
chama matinal, dão-lhe acentos errados às frases.
E volta para trás, para dentro, onde vivem bre-
vemente as imagens de um rio estagnado, bancos
de areia na nostalgia da noite, futuros inversos,
um canto de cúpulas no nascimento do musgo. A
sua voz apodrece.


Nuno Júdice
In Poesia Reunida 1967-2000

A praia
gelada e fria,
pelo povo esquecida,
pelo vento arrefecida,
incumbiu-se de eliminar
o som, o cheiro, o sabor,
o futuro ardor
de sentimento ... o olhar.

A negrura
de meu destino,
estranho fado vespertino
criado de torpe cantiga,
ecoava na aurora humana
história antiga,
apagada pela vida mundana,
nefasta amiga.

O tempo
que fecha canções,
abre os corações,
dentro de mim
cria raízes e procura,
numa descida sem fim
à morte obscura,
se esquecer
que o cruel mundo
é fomentado pelo profundo
medo ... de crescer.

Em mim,
navio brando,
desaparece a calma,
navego então pelo bravio,
mas agora sim a ver,
a encontrar em cada alma,
em cada defeito, cada desvio,
a semelhança do ser.

Em ti,
ser sublime,
descobri a perfeição,
do olhar humano ausente
incapaz de ver a conjugação
em matéria e essência presente;
quis assim viver o amor,
condensar o sentimento
num só momento,
naquilo a que chamam louvor.

A tua presença,
alimento de minha existência
é martírio do mesmo espírito, clemência!
Por muito que tente,
algo mais forte me impede
de te dizer o quanto te amo,
por muito que tente,
algo mais forte me impede
de parar o amor que aqui proclamo.

Peço, pois, o perdão,
aquele esquecimento que se pede
quando a ferida é muito grande
e de continuar aberta nada a impede;

Estive ali perto, aqui longe
e, neste momento, peço
perdão, pelas vezes que não te chamei,
perdão, pelas vezes que não te amei,
pelas vezes que embora
já longe da escuridão
voltei a procurar refúgio
na cegueira da mente,
escondendo meu coração
a teus olhos, tua face
de minha mão, de minha boca
teus lábios;

O meu corpo
pede a tua alma,
o meu ser
pede o teu corpo,
ansioso por cheirar
a verdura de teus olhos
e poder ver
a doçura de tua pele;

agora,
o sentimento condensado
irrompe em confusão
difusa ou mesmo prolixa,
espelha-se na luz da minha íris
procurando
repouso ... numa resposta tua.

Encontro dentro de ti
o belo da semelhança do ser.


Autor Desconhecido

segunda-feira, novembro 28, 2005

a voz


Pressentindo
o desassossego da noite
a voz
indicou o caminho
isolou o rosto
diluiu memórias
esqueceu o nome
humedeceu o olhar
a voz
ergueu bocas
em beijos loucos
sabotou o canto das aves
juntou à alma o mar
a voz
espreitou pela janela
prendeu-se num raio de luz
navegou desejos
cicatrizou feridas
mas mais...
a voz
petrificou lágrimas
culpou a solidão
uniu dois corpos
e
a voz
deixou por fim
ouvir o amor

l.maltez

Delírios Meus


Vivo em vôos e devaneios,
Delírios cansados de uma alma em busca...
Busca de seu elo perdido, sua meia asa que falta.
Deliro pois não sou completa...
Faltas-me tu, amor que não sei onde estás e de onde virás!
Mas virás!
Estás em meus sonhos, em meus desejos, em minha alma.
Em delírios meus!
Tenho todo o amor do mundo para ti.
Venha, sem medo!
Meu delírio não é loucura!
É desejo!


Tania Lemke

JOGO


Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.


Nuno Júdice
In Poesia Reunida

sábado, novembro 26, 2005

In extremis

Rugem os olhares
que à volta Imperam.
Toldam as forças
por te encontrar.
Ideias em torrente,
que à volta esperam
medos em catadupa
upa upa
Remoinho latente
do futuro a achar.

Concomitantemente,
intimida o oceano.

Pecola, 26 de Novembro de 2005

sexta-feira, novembro 25, 2005

A quem deixar


A quem deixar o meu guarda-roupa oculto
o guarda-roupa fantasma
de todos os vestidos
que tive e que me abandonaram
os vestidos
que nunca tive e que vesti em segredo
O vestido que veio demasiado cedo
e que nunca me caiu bem
o vestido
que chegou já tarde
para ir à festa
quando eu já tinha adormecido.

O vestido de criança
tão igual ao vestido
da primeira boneca
O da menina com o corpete já estreito
apertava os seios doendo-lhe em casulo
O da adolescente que pressentia o homem
ladrão de túnicas na sesta sufocante.

O vestido esquecido
da mulher que sob a sombra
do homem eclipse ocultou-se uma noite
e amanheceu como a lua cheia
surpreendida pela luz na metade do céu.

O vestido de guerra rasgado
como bandeira
da mãe partida em dois
para sentir-se inteira.

O vestido de luto que não levei para os meus
mortos
que ainda vivem.

Os vestidos que alguém me emprestou para sonhar

...Quando chegar a morte também será um vestido
que não verei porque estarei a dormir.

Josefina Plá

ESPERANÇA


Olhos, olhos gloriosos, olhos milagrosos, olhos radiosos
Corpo de criança, espírito de mulher
Sedutora fatal, sem querer mal aos homens que atrais
e que mais tarde destróis, alma de virgem, corpo de puta,
espelho da alma doce e triste, amarga e alegre cruz da tua vida, espinho do teu peito que te destrói a preceito, sem eito nem jeito, como uma boneca de cartão.
Luz no fundo da estrada, pedra no meu caminho,
alimento que mata porém alimenta,
pecado mortal mas nem menos sensual que a rosa do jardim.
Pequena de corpo, imensa de espírito,
Amor tu procuras, sexo tu consegues,
despeito te oferecem, tristeza tu encontras.
Amantes ciumentos, amantes perigosos,
amantes ruidosos, amantes fugazes que te usam e abusam,
te amam e te deixam, te prometem e te esquecem só pra te ter,
a ti e esses olhos de mulher,
a esse corpo de criança,
a essa alegria inocente,
a esse sorriso capaz de apagar as estrelas e esmorecer o sol,
a esse sorriso em cujos olhos brilham,
se não nos encandeiam ao menos nos devoram.
Nos devora corpo e alma,
saber e querer de noites fogosas e apaixonadas.
Amo-te! Com toda a força que o corpo deixa,
que as palavras exprimem, que o mundo aguenta.
Somos um, somos tudo, somos todas as coisas,
boas ou más, frias e quentes, doces e amargas, pálidas e coloridas.
Ignoras-me, não me reconheces, aproximas-te, afastas-te,
interrogas-te dos meus intentos, dos meus sentimentos,
do que quero, do que estou disposto a te dar.
Tudo! Dou-te a minha vida, o meu sangue,
a minha alma, o meu espírito.
Perco a cabeça, sofro como um condenado à morte em vida,
desespero pelos teus olhos, agarro-me à tua imagem,
imagino o teu sorriso, saboreio o teu espírito, sonho com o teu corpo.
Abraça-me! Beija-me!
Leva-me deste mundo vil e destrutivo, acolhe-me no teu universo, une-te a mim, sejamos um, não me abandones,
não me deixes no deserto da solidão, no sotão da tristeza.
Ama-me! Absorve-me!
Aguardarei...


Tiago Santos

quinta-feira, novembro 24, 2005

Autografia



Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto
qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato
grande


Mário Cesariny de Vasconcelos

A Pomba


Fui viajar
Até ao ninho do teu colo
Deitei-me a sonhar
Na tua asa de pomba
Voaste-me para longe
Além de ti e do infinito
Aquém do Nada
E deste-me um Mundo
Agora, deixa-me ser brisa
Trazer-te no meu sopro
Beber-me em teu olhar
O Beijo da vitória
O Abraço da glória
O corpo do segredo
Deixa-me ser a lágrima
A mágoa da loucura
A ferida do pecado
A dor do desejo
Esse desejo...
Que é só de Amor
Esse Amor...
Que me prende
Às tuas asas proibidas
Dessa tua pomba de ti
Com nome de Esperança
E cor de Saudade
Que há-de matar em mim
Este medo de Amar
Que sinto em ti
Desde sempre
Até ao fim
Minha pomba.


Rita Sá

terça-feira, novembro 22, 2005

É difícil esquecer tudo o que se sabe que vai mesmo ficar.
Foste uma parte de mim, existias em mim como aquilo que se precisa para poder sonhar mais alto, deste-me a mão e eu só queria que ficasses por perto e não posso deixar de te dizer que te amei, amei muito, tudo o que sonhei foi verdadeiro, tudo o que quis foi sincero, tudo o que te dei não te pedi de volta...
dei porque te amei, só isso.
dei tudo isso e tu até estavas por perto e mesmo assim sentia-me só, estavas mesmo ali ao pé de mim, mas eu olhava para ti e nem te via, olhava bem para dentro de ti e não havia nada....
tudo em ti era um deserto virgem, nunca ninguém por ti passou ...
tu nunca deixaste, e eu quis e tentei mesmo atravessar esse deserto invencível que é fatal para qualquer um e não tinha medo de morrer ou de te perder....
mas não consegui
foi impossível passar por ti e ficar em ti
mas foi possível ficares aqui, bem dentro de mim, guardado num cantinho que vai ser sempre teu, aquele canto onde eu vou ficar sempre quando tiver saudades, mas só por um momento e depois eu saio e tu ficas lá no mesmo lugar onde vais sempre ficar, no meu coração...voltar a amar-te?
não, já ficaste por lá, não podes mais transportar-me naqueles sonhos que um dia também foram meus...
já estou muito longe de ti...
os nossos caminhos são diferentes hà tanto tempo e tu nunca reparaste
eu despedi-me de ti e tu nem viste
e isso já foi há tanto tempo
transforma o teu deserto num jardim colorido cheio de arvores e flores bonitas, vais ver que não custa, é só querer
um dia vai passar alguém por lá, vai acampar nesse lugar que tu podes tornar paradisíaco e não vai querer sair
onde ficas tu na minha vida?
ficas por lá naquele lugar onde te deixei há muito tempo...
um dia destes vou lá ter contigo, mas depois volto para ficar comigo,

a felicidade agora já tem outro nome...


Autor Desconhecido

Se quiseres que eu me perca

Se quiseres que eu me perca,
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.


Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.


Rui Coias

Os campos todos pertencem-te

Os campos todos pertencem-te. E são felizes.
O crepitar dos grilos e os ralos,
a flor do cardo e as romãzeiras,
a água toda, e até as gotas de orvalho,
pertencem-te. Felizes são.

E eu, por não ser teu,
apenas sonho ser alma dos bichos,
a folha do pinheiro,
para todo em ti eu ser,
e desde sempre, como os campos todos,
ser.




António Mega Ferreira

"É em dias como estes que sinto o mundo quase a parar, como se só tu existisses e fosse a tua respiração a ditar a velocidade a que ele deve rodar. Vejo-te de braços abertos a sorrir-me, antes de te dissolveres num abraço imenso no qual eu aproveito para me esconder do mundo."

"Na terra dos sonhos podes ser quem tu és, agarras-te à hora em que o tempo não passou e juntos inscrevemos no espaço um novo alfabeto. Já passaram mil anos sobre o nosso encontro, mas o tempo não sabe nada, o tempo não tem razão, porque não há passo divergentes para quem se quer encontrar e enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. E mesmo que me tenhas ensinado a partir nalguma noite triste, eu ensinei-te a chegar e pus-te a salvo para além da loucura e ensinei-te a não esquecer que o meu amor existe."


Margarida Rebelo Pinto

MADRUGADA FRIA


Veste em silêncio a madrugada fria.
Sai sem que te vejam, por pontes e jardins,
seguindo o trilho deixado pela água nocturna.

Não te deixes interrogar pelas margens.
Quando chegares às indecisões, escolhe o caminho
mais perigoso, o mais seguro.

Ouve-me: só poderás confiar na tua ignorância
Não hesites em visitar as sombras, as falésias perdidas
tudo o que o sol apagou dos mapas.

Vou esperar-te do outro lado do dia,
onde as coisas tornam a descer dos seus pedestais
e é possível olhar o vago lume da paisagem.

Veste em silêncio a madrugada fria.


Vasco Gato

segunda-feira, novembro 21, 2005

OS DOIS POEMAS DA MINHA VIDA

1.

O meu canto é de esperança,
É de esperança sem fim...
O meu canto é de esperança
Que existe dentro e fora de mim.
Não vim a este mundo para viver só.
(O silêncio na minha boca, ainda quando o foi, foi um grito que me mordeu).
Eu vivo a dor de todos os que metem dó,
Luto por todo o que caiu na hora em que nasceu.


Vasco Miranda
Em Luz na Sombra



2.

Eu amo a tudo e a todos.
Por mim e por eles,
Por todos e por nenhum.
Eu amo a vida que nos abraça e funde
Naquele que é fonte donde ela saiu.
E eu amo assim...
Em graça e em sorrisos,
Na carne e no sangue...
Por mim e por eles:
- Por todos!...
Naquele que é em nós, naquele em que nós somos.
Porque a tragédia é esta:
- O soluço que vai da raiz que morreu
à Primavera que canta no rebentar dos pomos.


Vasco Miranda
Em Luz na Sombra

Profano as Coisas


Profano as coisas por amor
crio rachaduras
invento olhos e palavras
dentro de mim as coisas não sobrevivem
grudam desesperadas no muro
e rudes
no tempo
rabiscam formas
de lucidez.


Vera Lúcia Oliveira

domingo, novembro 20, 2005

Brigadeiros

Companheiros:

1 folha de ferro estanhada e fina, de leite condensado
5 colheres de sopa, de chocolate, reduzido ao pó
2 colheres de sopa, de manteiga
chocolate, em grânulos

Parto:

Dança com o leite, o chocolate e a margarina delicadamente. Entrega-os ao lume terno, acariciando sempre, até criar corpo e fazer uma estrada larga que os levará ao fundo, como a querer despegar-se da vida. Retira e abandona sobre a pedra oleada, fria.
Já amadurecida, arranca com determinação pequenas partes e brinca com elas passeando-as e enrolando-as por entre os dedos, untados de óleo. Embala suavemente as bolas na cama de chocolate granulado, mima-as e deita-as num leito de papel canelado. Plim!

sexta-feira, novembro 18, 2005

Vinícius... deixa-me tratar-te por tu !

O poeta
é um explorador de auras
que descobre que o amor
é um caminho para a morte,
ou só um destino
que pode passar pela fuga
como pela anti-fuga
ou pela poesia
como pela anti-ela-própria.

Talvez mais boamente
um caminho seja
para uma certa distância
em que se aposta tudo
num jogo de emoções
sem jamais enjeitar a vida.

E tudo, mas tudo,
compulsivamente episódico
graças a um tempo
equilibrado e acrobático
no presente, futuro e passado
e mais compulsivo ainda
por uma qualquer forma
de se tornar fundamental
revisitar um ausente...
Aliás, tão deveras presente
quanto pode estar alguém
como Vinícius de Moraes.

À partida e em euforia
recordar o seu sorriso
e a sua alma eterna.
Depois, tudo o mais,
até a cachaça escocesa,
eventualmente imoral
e, sim!, o transcorrer
por veia, ou estrada,
por empatia, até mim,
do deleite-delito lúcido,
de todo o seu luar,
tão cheio... tão pleno...
que eu o pudesse ser
e a minha filha dissesse:
“És um luar lindo, pai!”
Agora sou eu que digo:
És, sim, Vinícius!

Será ousado revisitar-te?
E querer-te
em consubstancia?
Saravah luar amigo!

P. S.
Ah que já nem sei o que acabou
por ficar de cada um de nós
ao longo dos versos do poema.
Nem estaria a visitar-te
se não respigasse algum verso
(junto de um dedo de “scotch”)
dos teus cenários poéticos.
Para quem lê ficará o desafio:
Que há de Vinícius de Moraes
neste poema?


_________________________LuMe
Luis Melo

Para lá da solidão...

para lá da solidão
que eu inventei
e vesti

outro cais se desenhava
na névoa dum novo dia

e tu vieste
e embarquei

e só então descobri
que antes de ti
não vivia.


Vieira da Silva

Amor! Amor!

Gosto de ti,
Porque é que não?
Amo-te, sim! sim!
Certamente.
Amor, loucura, paixão.
Princesa, rainha, mulher,
Fonte de prazer.
Em ti morri e nasci
E hoje vivo por ti
Por ti hei-de morrer.
Meu amor! Meu amor!
Contigo fugia,
Sem olhar para traz.
Sim! Sim!
Quem diria!
Sou louco?
É o que o amor faz!

Vinicius de Moraes

QUANDO O TEMPO PAROU...


No instante onde as almas se conheceram,
no plasma universal dos seres sem matéria,

encontrei-me!...
Parara o Tempo...

Na loucura doce do tempo sem Tempo,
num fragmento de Tempo intemporal,
repousei para sempre...


William Henry Clode
Bolhas de Água a Ferver

quinta-feira, novembro 17, 2005

ANTIGA DOR


O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento,
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção, um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser uma saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das Cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Essa nuvem primeira, essa sombra d’outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...


Teixeira de Pascoaes

Para ser grande, sê inteiro


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis
14-2-1933

Life is but a (Sweet) Dream


Autor desconhecido


Half living
Half dreaming
I hold the moment

The smile on your look,
eternal,
like the Kiss and the Rose

Soft… mellow…
Smooth soft skin
swaying soothing whispers
slow sweet touch…
Artificial scene
in the supermarket world.

And a Love on the side.


© Marta Duarte aka Pecola, 8.1.2005.

Sou apenas um sinal


sou apenas um sinal
sou apenas um caminho

(quantas vezes percorrido
até chegar ao destino?)


Yvette Centeno
Em A Oriente

Entropia


1.

Moribundo jaz o dia..., é noite!
A lua já no horizonte, ferida e viva;
As estrelas bem distantes arrefecem,
mas entretecido na roca o amor gira.
Fé e raiva são uma fortaleza inamovível
que na lama a dor vão modelando
como um boneco onde se grudam paixões esganadas!
Há fogo na noite e a língua matreira
é a água do dia de essências e desígnios!
Há talvez um pavor íntimo e perverso
num súbito e veloz frémito de natural melancolia
que um etéreo movimento destrói
e uma paixão desabrida atrofia...
Este rodar vai novamente repetir-se...:
à luz do sol dúvidas inúmeras...,
à luz da lua certezas indestrutíveis.
Aos poucos ressuscita a líquida transparência...
(...)


2.

Algo viaja entre tormentos e marés
como uma casca de noz, a pioneira,
lágrima rebelde e musicalmente trémula...
De momento sente-se apenas ingénuo infante,
mas vestindo a armadura da arte de guerrear...
Solta também um primeiro e singelo sorriso,
esboço de fraldas e rendas de filho primogénito,
um simulacro de caduca e efémera realeza.
Neste baloiço aprende a domesticar o silêncio
e a sugar o tutano à íntima transcendência.
Num palco vistoso, previamente encenado,
representa o papel de vítima insolente,
aniquilando o ser e a entrépida sabedoria.
Liquefeito esboroa-se numa ideia universal
orando a um ícone distante e representativo
numa posição restrita e assaz neurótica.
Pensa que qualquer penoso sofrimento
terá de ofertar num altar como feliz benemerência,
vergastando-se ao som do canto gregoriano.
De olhos reluzentes e fixos nas velas acesas
ajoelha e dirige este sacrifício oco e mesquinho
a uma luz dum ser de amada futilidade!...


3.

Seguro uma caneta pungente, satírico
e escrevo desmesuras num papel inútil.
Os pensamentos estilhaçam-me, espicaçam-me.
Estou abrigado sob um fluxo avassalador,
no qual as ideias surgem como vãs demandas
onde meu ser aparecia já enterrado.
No além-túmulo anjos, gusanos e demónios
sarapintam-me a cara com cera derretida
e plastificam o meu corpo numa fotografia tipo passe
para o torneio da disputa final dos condenados.
Grudado a uma vidraça bem gradeada
vou fingindo um dia a dia num tempo ilimitado,
mas onde estampo um incerto e estúpido futuro.
Zanga-se comigo um duro furor de mim.
Numa doida paixão e num eufórico folclore
tresandam junto a meus pés a compaixão e a fraqueza.
Agora sou bobo e personagem sem respeito
pelo absurdo, pelo caricatural, pelo grotesco
e estou preso por um alfinete ao existir e à estrofe
que rima com todos os torpes e fúteis arcaísmos
Numa doida paixão e num eufórico folclore.
O meu rosto enquadra-se num folhetim ou repertório
(dissonante...


4.

Vai-se andando aos tombos...
Nasce o sol. O galo canta.
O relógio desperta a sonolência.
A criança berra em choro inconsolável...,
precisa de carinho e leite desmamado.
Entretanto pelas esquinas perdidas,
coçando a lenta agonia e a duvidosa eternidade,
corre o tempo sem parança...
Ressoam vozes e passos já ouvidos,
saltitam pardais sempre famintos
e o chiar dos carros de bois tramela efemeridade.
As horas na torre estão ininterruptamente a soar.
Uma pobre adolescente, ao tempo indiferente,
entoa lânguidas cantigas e deixa ais no ar.
O mundo dos Homens está cheio deste rude penar,
ironia ou trama duma novela excêntrica
e todos sorriem deste cómico e técnico abuso.
Nas crostas de chagas bem recentes
reencontram uma natureza fria e murcha
e num dos bolsos esquecido e amarfanhado
o talão do imperativo Bilhete de Identidade.


5.

Um velho de bengala vem cambaleando
e chega morto ao meio daquele beco.
Na torre do castelo as horas sempre a soar...
O velho fora enganado por uma falsa partida!
Um miúdo, companheiro habitual,
envolve o corpo hirto num choro amante
rolando signos e lágrimas num som fúnebre.
Irredutível o tempo parece nunca se escoar!...
A luz dum candeeiro acende-se ali perto
alumiando a valeta e o corpo com luzes funestas.
No cimo do morro os ponteiros do relógio gigante
movem-se sem parar! São horas moribundas,
pois já não existe tempo para desvendar.
De súbito a fraca luz apaga-se...,
e duma fresta sai-em raios orvalhados,
que prenunciam o último refúgio ou esconderijo.
Tique..., toque..., tique..., toque...,
e o tempo na voz ressuma sem descanso!...
Os fogachos desta luz aparecida desvanecem-se
e um corpo cheio de vida faz repentina marcha-atrás!...


6.

As primeiras palavras emitem sinais...,
cortesias breves de um ingénuo sorriso,
mas são pérolas de fogo e flores
pétalas ardentes de estrelas cintilantes
muito tempo antes de o LOGOS as colher.
As primeiras palavras soltam rios,
devir de um afecto trazido pelo vento.
As primeiras palavras restolham beijos
dum íntimo prazer que cicia arrebatamento,
fluir onde se gera o húmus primacial.
E há encantos a vogar num barco e num Ser
que do amor emergem a escutar o mar.
Sem as palavras esse Ser seria feito de coral
e irremediavelmente uma matéria abstracta,
um eu que em si não se reconhece
e uma alma alienada que não se estende
ou fruto podre de reprodução crepuscular.
Mas este barco e este Ser não vão parar!
Ponho-me a contar signos pelos dedos trementes
e o tempo em sofreguidão a querer passar.
Sem esta teia de sinais fica uma mágoa permanente
semelhante a qualquer apêndice que um deus cá deixou!
E o meu lindo barco nunca há-de parar...,
apesar dum outro ser o pretender ultrapassar!
Oiço a deixa e encolho-me à beira da vertigem...


Abílio Sampaio
in Folhas Soltas

quarta-feira, novembro 16, 2005

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos


Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.

Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.

Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.

E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder
In Cobra

UM POEMA DE AMOR, AINDA...


Um trabalho sonâmbulo corrói a vegetação. O vento
assombra o mutismo das suas folhas. Incham com a chuva,
grávidas de uma febre cinzenta. Arranco-lhes esse fruto
com mãos de crepúsculo.

Ponho-o na mesa onde me sentei contigo. Colho
o teu olhar triste; espalho-o no prato onde a vida
arrefece. Comemos devagar cada sílaba do amor que
nenhum de nós prenuncia.

E um coral de silêncio brota dos teus
dedos, enquanto te afastas.


Nuno Júdice
In Poesia Reunida 1967-2000

Mala de Viagem


Começa por guardar um sonho dourado
pelo sol, por onde corra o vento mais quente; põe
sobre ele o silêncio que acompanha o desejo
dos amantes, limpando-o das sombras
do inverno; protege-os com a negra foice
do destino, de lâmina embainhada na geada
matinal, cujo brilho anuncia já o céu
do meio dia. Esvazia o búzio da madrugada
do seu recheio de amor, para que se possa ouvir
o mar sem o eco nocturno dos porões. Por
cima, põe as conchas do oráculo de rosto
apagado pelo degelo das estrelas. Lembra-te
que a porta que vais deixar não pode ficar
fechada; e que a chave do sono ficou entre
os seios nus da memória. Só assim
o teu horizonte será aqui, e de cada vez que chegares
a mala estará pronta para a viagem.


Nuno Júdice
In Revista MEALIBRA

UM AMOR

Aproximei-me de ti ; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice
In Poesia Reunida
1967 – 2000

SEI LÁ ! ... Sofrer utopias !

[ Sei lá ] 5

No universo raquítico
desta folha... e verso
já se vão tresmalhando
a minhas palavras
em versos bordados
e a fervilhar de fantasia.

Podem sofrer utopias,
e mascarar-se de quimeras;
serão cativas, talvez,
mas só deste universo;
pois que é bom
nem falar do reverso.

Pelo sim, pelo não,
convém manter firme
o foco da intuição
e o estado de alerta
no centro do meu radar;
pois que não quero
nem sonho ser abalroado
por acepções cúmplices
do verbo sofrer.

.
Luis Melo

terça-feira, novembro 15, 2005

Sehnsucht

Arde a chama,
Lenta a valsa..
Corre o tempo,
Treme a balsa.

De um e outro lado espero
Procuro o que jamais quero
Pois te ter será não ver
A nota que soa a falsa
Sorriso que ajeita a alça
Alma que transmite alento
E desperta

Sensações de um mero Ser.

© Pecola (Marta Duarte), 15 de Novembro de 2005.

oiço-te vento

louco o vento
no sopro vibrante da melodia


cantou agitado
bailou nas folhas outonais


sóbrio
impertinente
flutuou nos sonhos


despertou preguiçoso
no jejum do dia
saudando a branca manhã


sem peso renova-se
sem medos, sem sustos
sopra no coração


poderoso e livre
torna a doce brisa amarga


engana de frente ou pelas costas
em gritos esfumados
arrasa cruel sem se deter


quebra pela força
a beleza da vida presente



l.maltez

segunda-feira, novembro 14, 2005

Podem vir ventos e tempestades

Podem vir
ventos...
tempestades...
calmarias...
Que o rio,
nunca deixa de correr
para o mar.

Num abraço cúmplice,
amam-se

T.T.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Génese Possível

Os primeiros gemidos
terão sido de dor
possivelmente, até, de sangue.
A primeira fala, por ventura,
interjeitada.
Isto tudo, mais o facto
de o primeiro poema
ter nascido da mulher.
Como o primeiro sonho vivo
de uma lua prenha
o primogénito verso
ecoou, despido, ao luar,
foi voz plena e ecoante
numa qualquer primavera
e na boca de uma mulher.
Tenho a certeza
Eu estava lá e devia ser,
então, alguma célula,
ou um som consonante...
talvez um raio de sol.
Sei que eu estava lá
encastrado naquele momento
algures.
.
LuMe
Luis Melo

Nada Podeis Contra O Amor

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil,
isso podeis - e é tão pouco!


Eugénio de Andrade

quinta-feira, novembro 10, 2005

BICICLETA

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais-
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.


Herberto Helder
Ou O Poema Contínuo

FLOR DA PAIXÃO

Uma em cada ombro, rodeando o rosto
de olhos fechados, as flores são brancas, como
o vestido cujas alças deixam a descoberto
o busto, de onde os braços nascem, cingindo o corpo
até ao ventre. Sigo, então, o desenho das
sobrancelhas, que encontram um reflexo no
princípio de olheiras que pendem
das pálpebras; e quase poderia tocar o nariz,
onde sinto o frémito da respiração
provocado pelos lábios fechados com força,
como se uma tensão interior obrigasse
o corpo a reagir ao peso da alma. Esta
mulher és tu: agora que puxo as alças
do vestido para fora dos braços, e encontro
a nudez do teu corpo sob as flores
da paixão. Mas não quero que abras
os olhos nem os lábios: respira, apenas,
mais devagar, sentindo o perfume
da tarde; e enquanto dispo, pétala a pétala,
o jardim que me abres, ouço a música
de um cair de roupa no chão
do poema.


Nuno Júdice
In O Estado dos Campos

quarta-feira, novembro 09, 2005

É contra mim que luto

É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
Absurda aliança
de criança
e adulto,
o que sou é um insulto
do que não sou;
e combato esse vulto
que à traição me invadiu e me ocupou.

Miguel Torga

sexta-feira, novembro 04, 2005

Carta de Amor

Para te dizer tão-só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento.
Dizer amor como se fosse proibido
entre os meus braços enlaçar-te mais
como um livro devorado e nunca lido.
Será pecado, amor, amar-te demais?
Esperar como se fosse (des) esperar-te,
essa certeza de te ter antes de ter.
Ensaiar sozinho a nossa arte
de fazer amor antes de ser.
Adivinhar nos olhos que não vejo
a sede dessa boca que não canta
e deitar-me ao teu lado como o Tejo
aos pés dessa Lisboa que ele encanta.
Sentir falta de ti por tu não estares
talvez por não saber se tu existes
(percorrendo em silêncio esses altares
em sacrifícios pagãos de olhos tristes).
Ausência, sim. Amor visto por dentro,
certezas ao contrário, por estar só.
Pesadelo no meu sonho noite adentro
quando, ao meu lado, dorme o que não sou.
E, afinal, depois o que ficou
das noites perdidas à procura
de um resto de virtude que passou
por nós em co(r)pos de loucura?
Apenas mais um corpo que marcou
a esperança disfarçada de aventura...
(Da estupidez dos dias já estou farto,
das noites repetidas já cansado.
Mas, afinal, meu Deus, quando é que parto
para começar, enfim, este meu fado?)
No fim deste caminho de pecados
feito de desencontros e de encantos,
de palavras e de corpos já usados
onde ficamos sós, sempre, entre tantos...
Que fique como um dedo a nossa marca
e do que foi um beijo o nosso cheiro:
Tesouro que não somos. Fique a arca
que guarde o que vivemos por inteiro.


Fernando Tavares Rodrigues